terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Virando o mundo

No ventre de um minúsculo lugar, existia Lira que, à guisa de flor daninha, acampava os telhados de sua morada. Ela, a flor danada, filha deserdada dizia ser, bicho do mato claramente era, e seus mistérios nada se pareciam com aquela habitação e seus moradores.

Ali, na velharia de uma cidade, moravam Antônios, Armélias, Artires e outras tantas artérias de famílias que viviam feito em uma circulação vagarosa de sangue, enquanto a moça de nome instrumental catava, em pemsamento, pessoas de outro mundo, até que, em uma tarde, ouviu uma voz cheia de força trovadoresca; era o primeiro desejo de menina que estava sendo realizado: um homem novo surgia. Este, o quase trovador, era um violeiro que disse ter perdido o nome desde quando resolveu perder-se no mundo; então, só por ironia, os que o conheciam na estrada, chamavam-no de Vira-mundo. E ele era um.

Lira pediu para que ele cantasse umas modinhas antigas, daquelas que só o rádio à pilha canta e, quando entoava uma canção cheia de estórias, a menina sentia-se pequena demais; era nesse momento que ela percebia a fragilidade de pertencer a um lugarejo miúdo, de gente mais miúda ainda. Para Lira, a vida parecia um mito translúcido em que não havia a necessidade de se ser inerte. Através do violeiro, ela sabia que devia sair dali.

Sustentou-se como pode naquele lugar até o dia em que o homem anunciou a sua partida. Ela não podia mais deixá-lo, pois ele era o único dono de uma voz escura, e Lira era escura, tão quanto a terra que imaginava existir em outras cidades. Foi, então, que se deu por decidida. Pediu ao homem que a esperasse por alguns minutos; pegou uma linha e um vestido meio antigo; remendou as pregas deste; vestiu-se e disse estar pronta para ir com ele.

E com o violeiro Lira danou-se a viver, escura, feito andarilha em cidades escuras.

2 comentários:

Renato Torres disse...

dai,

lira escura tem a dura incumbência de ser-se, na entrega sem esperas (não mais que alguns minutos). os frutos possíveis sempre demandarão do tempo as suas relíquias invisíveis, mas visíveis nos sulcos da terra e do corpo. o porto nunca comportará apenas barcos que vão e vêm, mas também adeuses estrangulados no lugar em que ficam.

adorei o blog... continua!

beijo,

r

Lua disse...

A Lira escreve, a Lira vira movimento, parada à espera do lírio brotar.
A Lira gira sem se mover, num intenso e mágico escrever, giram-se palavras, dentro dela, e mais que isso: poesia, mistério, beleza!
A Lira menina cresce, o lírio floresce até o movimento parar. É ela, a menina que gira, as cordas que gritam, as notas que cantam.. Daiane Lira!

um beijo.